A cafeicultura brasileira enfrenta um paradoxo significativo: mesmo sendo o maior produtor mundial de café, o país tem registrado uma elevação expressiva nos preços do produto no mercado interno, enquanto simultaneamente enfrenta gargalos logísticos que impedem o pleno aproveitamento de seu potencial exportador. Em março de 2025, exportadores brasileiros deixaram de embarcar 637.767 sacas de café – o equivalente a 1.797 mil contêineres – devido a dificuldades operacionais nos principais portos nacionais. Este cenário não apenas gerou prejuízos diretos de R$ 8,9 milhões para as empresas exportadoras, mas também contribui para uma crescente pressão nos preços domésticos, afetando consumidores que enfrentam valores recordes para um produto intrinsecamente ligado à identidade nacional.
A Crise Logística nos Portos Brasileiros
A infraestrutura portuária brasileira tem se mostrado inadequada para acompanhar o crescimento do agronegócio nacional, resultando em um estrangulamento sistemático das operações de exportação. Conforme dados do Boletim Detenção Zero (DTZ), elaborado pela startup ElloX Digital em parceria com o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), em março de 2025, 55% dos navios que operaram nos principais portos brasileiros enfrentaram atrasos ou alterações de escala, o que representou 179 de um total de 325 embarcações.
O Porto de Santos, responsável por 78,5% dos embarques de café no primeiro trimestre de 2025, registrou uma situação ainda mais crítica, com 63% dos navios sofrendo atrasos ou alterações em suas escalas – foram 113 do total de 179 porta-contêineres afetados. O tempo mais longo de espera no embarcadouro santista chegou a alarmantes 42 dias, um período que compromete toda a cadeia logística do café brasileiro.
No complexo portuário do Rio de Janeiro, segundo maior exportador de café do país com 17,2% de participação no primeiro trimestre, o cenário não foi significativamente melhor. O índice de atrasos alcançou 59% no mês passado, com o maior intervalo registrado sendo de 15 dias entre o primeiro e o último prazo. Esse percentual representa 43 dos 73 navios destinados às remessas do produto que sofreram alteração de escalas.
O diretor técnico do Cecafé, Eduardo Heron, destaca a gravidade do problema: “Conforme dados de relatórios de mercado que monitoramos, além dos atrasos, descobrimos que ocorreram 19 omissões de escalas e outras 13 omissões por cancelamento da viagem em embarcações de longo curso, em março, por conta das limitações de infraestrutura portuária, que elevam o tempo de espera dos navios. Isso nos causa grande preocupação porque potencializa a lotação nos pátios, o que desencadeia efeito em toda a cadeia produtiva”.
Impactos Econômicos Para o Setor Cafeeiro
A não concretização dos embarques de café tem gerado um efeito cascata de consequências econômicas. Desde que o Cecafé iniciou o monitoramento dos impactos logísticos, em junho de 2024, o total de perdas acumuladas pelos exportadores já soma impressionantes R$ 66,576 milhões. Este valor contempla despesas adicionais com armazenagem, detentions, pré-stacking e antecipação de gates.
Para além dos gastos operacionais extraordinários, o país também deixou de arrecadar US$ 262,8 milhões em receita cambial apenas em março, o equivalente a R$ 1,510 bilhão, devido à não concretização dos embarques programados. Esta estimativa considera o preço médio FOB da saca de café verde (US$ 336,33) e a cotação média do dólar a R$ 5,7462 no período.
É importante observar que, apesar da redução no volume exportado, a receita cambial apresentou um crescimento expressivo. Em março de 2025, o Brasil exportou 3,287 milhões de sacas de 60 kg, um volume 24,9% menor comparado ao mesmo mês do ano anterior. Contudo, a receita cambial cresceu 41,8%, alcançando US$ 1,321 bilhão. Este fenômeno reflete as cotações elevadas no mercado internacional, impulsionadas pela diminuição da oferta global devido a condições climáticas adversas que afetaram importantes produtores como Brasil, Vietnã e Indonésia.
Márcio Ferreira, presidente do Cecafé, explica que “as bolsas de futuros vêm registrando preços altos há meses em função da diminuição da oferta global, por conta de extremos climáticos, os quais afetaram a produtividade nos cafezais de importantes produtores nos últimos anos”. No entanto, ele alerta que o cenário pode sofrer alterações devido a novas políticas comerciais e conflitos econômicos entre as principais economias globais, especialmente após o “tarifaço” apresentado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
A Dualidade do Mercado: Exportação versus Consumo Interno
O paradoxo da cafeicultura brasileira se evidencia na dissonância entre o mercado exportador e o consumo interno. Embora o Brasil seja o maior produtor mundial de café, contribuindo com 27% das exportações globais, os consumidores brasileiros enfrentam preços cada vez mais altos e, frequentemente, recebem um produto de qualidade inferior ao exportado.
Esta disparidade é explicada por diversos fatores. Primeiramente, a precificação do café segue parâmetros internacionais, com valores estabelecidos em dólar. Como resultado, mesmo o café destinado ao mercado interno tem seu preço influenciado pelas cotações internacionais, fato agravado pela valorização do dólar frente ao real nos últimos anos.
Além disso, existe uma diferenciação qualitativa significativa. O café destinado à exportação passa por rigorosos processos de seleção, privilegiando os grãos de melhor qualidade, principalmente da variedade arábica. Ao mercado interno, frequentemente são destinados grãos de qualidade inferior, resultando em um produto final com características sensoriais comprometidas, o que explica a predominância de cafés com torra excessiva no país – prática que mascara imperfeições dos grãos.
Este fenômeno não se restringe ao café. Outros produtos do agronegócio brasileiro como soja (56% das exportações mundiais), milho (31%), açúcar (44%), suco de laranja (76%) e carne bovina (24%) seguem lógica semelhante, priorizando mercados externos em detrimento do abastecimento doméstico a preços acessíveis.
Potencial para Mercados Halal e Estratégias de Diversificação
Diante deste cenário desafiador, a diversificação de mercados surge como estratégia fundamental para o setor cafeeiro brasileiro. Os mercados Halal representam uma oportunidade significativa e ainda subexplorada pelo Brasil. Embora o café seja naturalmente um produto Halal (permitido pelo Islamismo), a certificação formal pode agregar valor e facilitar a entrada em mercados muçulmanos com alto poder aquisitivo.
A importância das certificações Halal tem crescido globalmente, como evidenciado pela postura da maior organização muçulmana da Indonésia, Nahdlatul Ulama (NU), que recentemente instou seu governo a manter-se firme quanto aos requisitos de certificação Halal para produtos importados, apesar das críticas dos Estados Unidos. Esta postura demonstra a relevância cultural e religiosa das certificações Halal em países de maioria muçulmana, bem como o crescente debate sobre comércio internacional e soberania regulatória em questões que envolvem práticas religiosas.
Países como a Indonésia, que possuem uma expressiva população muçulmana, representam mercados potenciais para o café brasileiro certificado Halal. Adicionalmente, nações do Oriente Médio como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, com seu elevado poder aquisitivo, constituem oportunidades promissoras para cafés brasileiros de alta qualidade que atendam às exigências da certificação Halal.
Perspectivas e Caminhos para a Superação da Crise
Embora os recentes anúncios de investimentos em infraestrutura portuária – como o leilão do terminal TECON10, a concessão do canal de entrada marítima de Santos, o túnel Santos-Guarujá e a nova via da Rodovia Anchieta – representem avanços, Eduardo Heron, diretor técnico do Cecafé, alerta que “os investimentos são importantes, mas não resolvem os prejuízos imediatos. Precisamos de soluções urgentes para manter a competitividade do agro brasileiro.”
No curto prazo, medidas como a otimização dos fluxos operacionais nos portos, ampliação de janelas de atracação e melhoria na coordenação entre os diferentes elos da cadeia logística podem mitigar os impactos. No médio e longo prazos, investimentos estruturais em ferrovias, hidrovias e na modernização dos portos são imperativos para eliminar os gargalos existentes.
Para o mercado interno, políticas que incentivem a comercialização de café de melhor qualidade a preços acessíveis poderiam transformar a relação dos brasileiros com este produto nacional. Programas de educação do consumidor sobre os diferentes perfis de café, métodos de preparo e características sensoriais contribuiriam para elevar o patamar do consumo doméstico, criando um mercado mais exigente e consciente.
Conclusão: Um Desafio Estrutural para a Competitividade Brasileira
A crise logística que afeta as exportações de café brasileiro evidencia um problema estrutural que compromete não apenas o setor cafeeiro, mas a competitividade do agronegócio nacional como um todo. O descompasso entre o crescimento da produção agrícola e o desenvolvimento da infraestrutura logística resulta em perdas econômicas significativas e reduz o potencial exportador do país.
Simultaneamente, o paradoxo de sermos o maior produtor mundial de café e enfrentarmos preços recordes no mercado interno revela as contradições de um modelo econômico que prioriza o mercado externo sem garantir equilíbrio com as necessidades domésticas. Em um contexto de volatilidade cambial e incertezas geopolíticas, como as recentes políticas comerciais protecionistas dos Estados Unidos, a diversificação de mercados, incluindo o promissor segmento Halal, apresenta-se como alternativa estratégica.
O Brasil possui potencial para superar estes desafios e consolidar sua posição de liderança no mercado global de café, mas isto exigirá investimentos consistentes em infraestrutura, modernização regulatória e um reequilíbrio entre as demandas dos mercados externo e interno. Somente assim o café, símbolo da identidade brasileira, poderá expressar plenamente seu potencial econômico e cultural, tanto no cenário internacional quanto no cotidiano dos brasileiros.
Referências
- Exportadores de café enfrentam prejuízo de R$ 8,9 milhões com gargalos logísticos nos portos brasileiros
- Falta de estrutura nos portos atrasa o embarque de 600 mil sacas de café
- Conselho dos Exportadores de Café do Brasil
- Exportação de café do Brasil recua em volume, mas receita dispara em março, revela Cecafé
- Exportações dos Cafés do Brasil registram crescimento de 41,8% na receita cambial e queda de 24,9% no volume exportado em março de 2025
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